Opel Corsa Carbono Neutro

Um dos meus principais traços de personalidade é conduzir um Opel Corsa A 1.5D de 1992. Tem aquele aspecto clássico-chunga que passa despercebido com o qual me identifico. Bebe pouco e tem uma bagageira espaçosa o suficiente para o artilhar como se fosse uma autocaravana.

É a minha máquina de eleição para as tarefas de um geógrafo-vagabundo-precário. No entanto, esse estilo de vida obriga-me a andar sempre com ele na reserva, dez euritos de cada vez e sempre nas bombas mais baratuchas.

o famigerado opel corsa

o famigerado opel corsa

Uma noite, quando ia buscar o meu irmão ao aeroporto, fiquei sem gasóleo em plena autoestrada. Um par de telefonemas nervosos e lá arranjei alguém que me safasse um garrafão de gasóleo às duas da manhã, sem que as autoridades topassem. Antes de ir para casa procurei a bomba mais próxima e fui pôr cinco euros numa gasolineira de alto gabarito no Parque das Nações. Há mais uma coisa importante que devem saber sobre o Corsa: manda fumo, bastante, especialmente quando dou à chave ou carrego mais fundo no acelerador.

As alterações climáticas e os seus efeitos são, talvez, a coisa que mais me preocupa nesta vida. “Então, mas tu és ambientalista e conduzes um Corsa fumarento? Ligeiramente paradoxal, mano”. Irónico, bem sei, mas se algo aprendi com aquela madrugada e os cinco euros na Bomba Petrolífera foi que não nos devemos preocupar: é possível andar de Corsa (ou Ibiza, respeito todos os níveis de chungaria automóvel) e ser amigo do ambiente, carbono neutro, compensar todas aquelas nuvens de fumo que pintam de negro as estradas e paredes em torno do escape.

Isto são óptimas notícias! Assim posso continuar a conduzir o meu fumarento sem me preocupar com o impacto ambiental da extracção e queima de combustíveis fósseis porque, se abastecer ali, eles compensam a minha pegada ecológica. Parece bom demais para ser verdade e é mesmo. Para desmontar este tipo de afirmações é preciso compreender de antemão um conjunto de coisas: 1) como funciona o ciclo do carbono; 2) o significado de “pegada ecológica”, “carbono neutro” e “compensação de emissões”; 3) o que é a “mitigação das alterações climáticas” e qual a sua relação com as noções de “neutralidade carbónica” e outras.

Isso do Carbono é tudo o mesmo?

O ciclo do carbono tem um funcionamento parecido com o ciclo da água que todos conhecemos, ou seja, tem dois ritmos principais: os ciclos ‘curtos’, onde uma determinada quantidade de carbono está disponível para mudar de estado numa questão de minutos, horas, dias ou anos (parecido com a precipitação/evaporação do ciclo da água); e os ciclos ‘longos’ que, lentamente, removem algum desse carbono para integrarem reservatórios de longa duração, onde permanecem milhares a milhões de anos (à semelhança da água mantida nos glaciares). Uma versão mais detalhada do que este texto merece pode ser consultada aqui.

Dos ciclos de curta duração fazem parte o carbono que existe na atmosfera, na camada superficial dos oceanos, na matéria orgânica do solo ou em todos os seres vivos. Cerca de 18% do peso de cada um de nós corresponde a átomos de carbono, portanto, com os meus 64kg de fraca figura tenho algo como 11,5kg de carbono que serão colocados no solo quando morrer, espero, daqui a algum tempo. O mesmo acontece com os restantes seres vivos quando chegam ao fim da vida, ou com os chichis e cocós que vão fazendo por aí; são duas das vias de retorno ‘rápido’ do carbono de um estado para o outro.

A fotossíntese é outro exemplo de um ciclo do carbono de curta duração: as plantas juntam a água que absorveram com o dióxido de carbono presente na atmosfera para, com a ajuda da energia solar produzirem glucose, a partir da qual se fazem depois outros componentes (proteínas, gorduras, celuloses, por aí fora). Também os oceanos têm um papel neste tipo de ciclos através das trocas gasosas que ocorrem entre a atmosfera e a superfície oceânica.

Nos ciclos de longa duração encontramos o carbono que é removido dos ciclos curtos e depositado em profundidade. Neste tipo de movimento encontramos, por exemplo, o carbono presente na matéria orgânica no fundo dos oceanos que depois vai integrar camadas geológicas mais profundas. A palavra ‘fósseis’ em “combustíveis fósseis” refere-se exactamente a isso: as reservas de petróleo não são mais que grandes bolsas de matéria orgânica de diferentes origens que outrora estiveram à superfície e faziam parte dos ciclos curtos, mas que foram fossilizadas e, após milhões de anos de altas temperaturas e pressão, se tornaram naquele líquido negro. No entanto, para haver uma espécie de ‘equilíbrio’, falta que algum do carbono dos ciclos ‘longos’ seja devolvido aos ciclos curtos de alguma maneira. Essa transferência é da responsabilidade do vulcanismo que, de vez em quando, devolve grandes quantidades de carbono para a atmosfera.

Portanto: existem dois ritmos de ciclo do carbono cujo equilíbrio (ou espécie de) é regulado naturalmente pelos vários sistemas terrestres; onde entramos nós nisso? Quando extraímos e queimamos combustíveis fósseis estamos a acelerar o processo de transferência do carbono do ciclo de longa duração para o ciclo curto. Estamos a retirar carbono que demorou milhões de anos a ser depositado e a reemiti-lo para a atmosfera em pouco mais de dois séculos, alterando a uma escala sem precedentes o balanço radiativo da atmosfera e acelerando alterações climáticas. Isto leva-nos ao ponto seguinte.

O que é isto do “carbono neutro”, “pegada ecológica” e “compensação”?

De volta àquela madrugada e aos meus cinco euros no Parque das Nações, ao “conduza carbono neutro” através dos vários “projectos de compensação de emissões”. Abrindo o site podemos ver que “As compensações de carbono são criadas através do apoio a atividades que reduzem ou removem emissões de carbono (…) [tais como o] desenvolvimento de energias renováveis ou projetos que protegem ou realçam os recursos naturais que absorvem CO₂e da atmosfera - como terra e florestas.”

Ok, parece simples, portanto, não deve ser. Seria se o carbono “fosse todo o mesmo”, mas, como vimos, estamos a falar de ritmos de ciclagem completamente diferentes. Vamos ilustrar: temos duas caixinhas cada uma com cem berlindes. Retiramos dez berlindes de uma e colocamos na parte de cima da outra; temos agora 90 berlindes na primeira caixinha e 110 berlindes noutra. Para compensar, retiramos dez berlindes da parte do topo dessa e colocamos no fundo da mesma. Continuamos com 90 berlindes numa caixinha (ciclo de longa duração) e 110 berlindes na outra (ciclo de curta duração). Conclusão: jogar ao berlinde é divertido.

Vamos aos projectos:

  1. Índia: “apoiamos o equipamento de cerca de 5 mil casas rurais com biodigestores e fogões eficientes que produzem biogás de baixo carbono para cozinhar, em vez de usar combustíveis sólidos, como lenha.”

  2. México: “ajudámos a equipar mais de 30 mil casas rurais com fogões que queimam muito mais eficientemente e usam menos lenha do que um fogo aberto tradicional, o que resulta numa diferença crítica para a saúde das famílias.”

  3. Zâmbia: “suportamos projetos comunitários que reduzem a dependência da desflorestação, aumentam a diversidade das fontes de rendimento e melhoram as infraestruturas locais.”

Antes de mais, qualquer um destes projectos parece ter um impacto importante nas populações visadas, com uma proposta de benefício para a saúde, igualdade de género e dependência de recursos naturais. No entanto, todos eles são de redução de emissões e não de captura de carbono, ou seja, para continuar a sua actividade de extracção queima e venda de combustíveis fósseis, investe neste tipo de programas para vender a ideia de que estão a reduzir as suas emissões quando na verdade estão a reduzir as de outras populações por ser muito mais barato. Já escrevi sobre este assunto aqui (capítulo 3), pode ser um ponto de partida para uma leitura mais aprofundada.

É absurdamente irónico que uma empresa que extrai, queima e vende combustíveis fósseis tenha o descaramento de dizer a populações rurais de países “”em desenvolvimento”” para reduzirem a sua pegada ecológica. É uma falta de respeito, consideração e sensibilidade que parte dos cinco euros que pus no meu Corsa fumarento tenham servido para dizer a uma família na Índia, no México ou na Zâmbia para não usarem lenha nos seus cozinhados. É injusto, desumano e revoltante.

O “Carbono Neutro” destas empresas (e não só) não é mais que um golpe de publicidade e marketing. Não são novatos nestas andanças: a ideia de “pegada ecológica” (Carbon Footprint) foi popularizada através de uma campanha de marketing milionária muito eficaz na transferência de responsabilidade das empresas/indústrias altamente poluentes para as nossas acções individuais. A internet abunda em calculadoras para que cada um de nós estime o peso da sua responsabilidade e possa depois pagar para “compensar” o seu impacto em projectos de qualidade, adicionalidade, transparência e permanência duvidosos. Tudo isto é possível ao abrigo do conceito de “mitigação das alterações climáticas”, o nosso terceiro ponto.

Mitigação, ou a importância do significado das palavras

Segundo o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, por “mitigação” entende-se a “intervenção humana para reduzir a fonte ou diminuir a presença de gases com efeitos de estufa na atmosfera”. Esta ambiguidade no conceito permite que empresas, indivíduos ou eventos possam dizer que “compensam emissões” quando, na realidade, estão apenas a reduzir emissões noutros sectores, por ser mais barato. É verdade que do ponto de vista legal não há problema absolutamente nenhum. Já do ponto de vista ético e ambiental tenho várias dúvidas.

A emissão de gases com efeito de estufa está directamente relacionada com o desenvolvimento económico de alguns países. O nível de vida que usufruímos hoje é altamente intensivo na exploração de recursos, mudanças de uso do solo e queima de combustíveis fósseis. Tudo isto tem emissões de gases com efeito de estufa e, portanto, um impacto no balanço radiativo da atmosfera e nas alterações climáticas.

Existe ainda outro problema, relacionado com a alegoria das caixinhas de há pouco: a extracção e queima de combustíveis fósseis retira carbono do ciclo longo para o ciclo curto; no entanto, a extracção e queima de lenha, por exemplo, é retirar carbono de um dos componentes do ciclo curto (biomassa) para outro (atmosfera). Trocado por miúdos, temos o seguinte: uma empresa com um elevado volume de emissões – que movem carbono dos ciclos longos para os curtos – em vez de investir na redução das suas próprias emissões, investe em projectos para que outras comunidades com uma pegada infinitamente menor reduzam as suas emissões que movem carbono dentro dos ciclos curtos.

Se na altura do Protocolo de Quioto (1997) parecia fazer sentido um mecanismo deste tipo, as décadas que se seguiram mostraram que o sistema tem várias falhas: em primeiro lugar porque faz equivaler a redução de emissões de uma petrolífera com a redução de emissões de uma comunidade rural em África; em segundo porque falha em reconhecer a diferença na origem do carbono que é emitido para atmosfera; para além disso, as falhas de adicionalidade, verificabilidade, transparência, permanência e monitorização são gritantes (ler mais aqui, aqui ou aqui). Isto tem um nome: Greenwashing.

Não quer isto dizer que os esforços na redução das emissões sejam negligenciáveis, antes pelo contrário, são uma das várias partes fundamentais no plano de combate às alterações climáticas. No entanto, não vale a pena trocar alhos por bugalhos: a redução de emissões de gases com efeito de estufa com origem em combustíveis fósseis só deve ser comparada a reduções de emissões dessa mesma fonte. Idealmente, este tipo de emissões deveria ser “compensada” por um mecanismo de captura que devolvesse a mesma quantidade de carbono atmosférico para o subsolo, com um muito elevado tempo de retorno.

No entanto, à falta de uma solução tecnologicamente viável de fazer essa remoção e captura de carbono, existe um conjunto de soluções que nos permitem ganhar algum tempo, as chamadas “soluções baseadas na natureza” (do inglês nature-based solutions). De entre estas soluções temos a reflorestação, recuperação de turfeiras ou sequestro de carbono no solo, mas, ainda assim, continuamos a trabalhar ao nível dos ciclos curtos. O Sequestro de Carbono no solo é, talvez, aquele que oferece melhores resultados ao nível do volume total, permanência e co-benefícios.

O que é que isto quer dizer?

De volta ao meu Opel Corsa. Vamos partir do princípio de que a fumarada daquele menino é “compensada” da melhor forma possível: captura e sequestro de carbono com monitorização, verificação, transparência e co-benefícios comprovados. Vamos admitir que cada tonelada de carbono que emiti foi capturada por uma árvore, ou convertido em matéria orgânica no solo para lá permanecer nos próximos tempos. Ainda assim não sou “carbono neutro”. Por um lado, o carbono que foi retirado dos ciclos longos não vai regressar tão cedo, por outro, aquele que foi capturado pela biomassa e solo pode ser reemitido com alguma facilidade (incêndios, seca, erosão hídrica…). A “neutralidade” é, portanto, uma palavra vazia, publicidade.

Por mais que me custe, o meu Opel Corsa A 1.5D de 1992 nunca será carbono neutro, mas vou sempre gostar muito dele.

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