Kiss the Ground [crítica]

originalmente publicado no Espalha-Factos a 13 de outubro de 2020

Passaram quase 40 anos desde a estreia em televisão, em 1981, do primeiro documentário sobre a existência de alterações climáticas causadas pelo ser humano. Até hoje, foram lançadas dezenas de outros documentários sobre as causas, os efeitos e possíveis “soluções” para aquele que é considerado um dos grandes desafios do século XXI. Dada a importância do tema, não é surpresa que alguns destes trabalhos tenham ganho notoriedade e popularidade, ao ponto de promoverem mudanças de comportamentos nos espectadores: quase todos conhecemos alguém que se tornou vegan ou vegetariano depois de ver Cowspiracy: o segredo da sustentabilidade.

Esta mediatização de documentários sobre o ambiente encerra um conjunto de desafios: simplificar causas, efeitos e sugerir soluções únicas e últimas, apesar de ajudar no discurso e na transmissão da mensagem, acaba por introduzir um conjunto de más interpretações – quer por parte do/a produtor/a, quer do/a espectador/a – que podem, sem querer, fazer mais mal do que bem.

Isto acontece porque, em primeiro lugar, as soluções apresentadas são geralmente relacionadas com escolhas individuais como força-motriz de alterações sistémicas – as chamadas ‘soluções do lado da procura’ – em detrimento de fazer pensar no sistema como um todo e no papel mais ‘abstrato’ não imediatamente ao alcance de cada um de nós, mas sim um esforço conjunto local, regional, nacional e global – as ‘soluções do lado da oferta’. Por outro lado, também se percebe que seja mais fácil e apetecível tentar criar no público o sentido de ‘responsabilidade’ pessoal/individual por cada uma das suas escolhas, deixando de lado o quão enraizado no sistema de produção estão as emissões de gases com efeito de estufa: mais do que se produz e consome, importa saber como e onde é feita essa produção, uma vez que isso afeta diretamente a pegada ecológica do que quer que comamos.

Fotografia: Kiss the Ground / Divulgação

Fotografia: Kiss the Ground / Divulgação

Mais um documentário ‘alarmista’ com uma solução ‘milagrosa’?

Kiss the Ground, lançado no final do mês de setembro e disponível na Netflix, é parte de um projeto mais amplo que conta também com um livro, um blog e um podcast relacionados com a mitigação das alterações climáticas. Sob o lema “Nós Conseguimos” (We Can Do It), é apresentado um conjunto de ‘soluções’ que, através do modo de gestão da produção agropecuária, florestal de desperdício alimentar permitem capturar parte do carbono presente na atmosfera. É um documentário de Esperança.

Há tantas más notícias sobre o nosso planeta que é avassalador. O medo de irmos em direção a um penhasco paralisa a maioria de nós. A verdade é que desisti. E, provavelmente, vocês também. Mas e se houvesse outra forma?

Realizado e produzido por Josh e Rebecka Tickel, Kiss the Ground conta com a voz de Woody Harrelson (conhecido, entre outros, pelo seu papel em True Detective) para narrar os pressupostos científicos, as soluções propostas e alguns exemplos onde estas respostas foram postas em prática com efeitos benéficos. Conta também com a participação de outras figuras mediáticas como Ian SomerhalderGiselle Bündchen, Jason Mraz e Tom Brady.

Kiss the Ground não esconde ao que vem: em lado algum é dito que o sequestro de carbono no solo é a única solução para remover dióxido de carbono da atmosfera (ao contrário do que acontece com, por exemplo, Cowspiracy); em vez disso, procura mostrar que tipo de benefícios ecológicos, económicos e sociais podem ser esperados com uma nova forma de pensar a produção alimentar, e de que forma esse novo paradigma deve ter em conta não só o melhor conhecimento científico possível, mas também o conhecimento popular/tradicional, para que a tomada de acção seja mais facilmente atingível.

Uma solução debaixo dos nossos pés [spoilers]

No que diz respeito ao carbono no nosso mundo, há muita confusão”: o carbono não é “mau da fita” (lembremo-nos da recente campanha da EDP, entretanto corrigida, que apelava a uma geração “carbono zero”), o problema reside na quantidade de carbono que estava muito bem guardado no subsolo como combustíveis fósseis, e que foi transferida para a atmosfera sob a forma de CO₂, com os efeitos no clima que todos conhecemos.

A ‘solução’ apresentada passa por capturar esse carbono atmosférico pelas plantas, transferi-lo para a matéria orgânica do solo, de forma a que esse carbono seja ‘guardado’, e utilizado de volta na criação de melhores condições para a produção agrícola. Para além disso, cria condições para proteger o solo da desertificação (a palavra chique que usamos quando a terra se torna em deserto), apresentada logo no início do documentário como uma das grandes causas do colapso de algumas civilizações por sobrecarga nos recursos naturais, como o solo e a água.

A relação entre o solo, as plantas e o clima é paralela à relação entre o solo, a alimentação e a sociedade, economia e política: um bom solo tem condições para servir de suporte a mais vegetação, que por sua vez produz mais humidade (40% das chuvas globais têm origem em humidade não causada por evaporação de água, mas sim transpiração de plantas) e captura mais carbono que – pescadinha de rabo na boca – permite solos mais ricos e assim sucessivamente. Da mesma forma, “solos pobres criam pessoas pobres; pessoas pobres levam ao colapso social”: o documentário refere um total estimado de 40 milhões de pessoas que, anualmente, se vêm deslocadas das suas terras, e que até 2050, mil milhões de pessoas serão refugiados devido à desertificação.

Solos marginais, cultivados em condições marginais, produzem colheitas marginais e permitem vidas marginais. Por outro lado, cultivados em condições óptimas, produzem boas colheitas e criam boas condições de vida
— Rattan Lal

Onde falha: afinal, é um documentário na Netflix

Kiss the Ground também não deixa que nos esqueçamos de que se trata ‘apenas’ de ‘mais um’ um documentário de massas (e pouco mal há nisso): muitos dos valores apresentados são referentes a máximos de uma janela de possibilidades de vários modelos (por exemplo, os mil milhões de refugiados da desertificação até 2050 vêm de um estudo que apresenta uma estimativa entre 25 e 1000 milhões, com um valor mais amplamente referido de 200 milhões).

A presença das figuras públicas ao longo do documentário parece ter apenas o intuito de dar alguma visibilidade pop ao tema, quando na esmagadora maioria das intervenções, estas personalidades acrescentaram nada ao conteúdo da mensagem que os produtores procuram transmitir. Exceção talvez perdoada à viagem de Ian Somerhalder ao Zimbabué para ver na primeira pessoa o trabalho de Allan Savory, também ele relativamente mediatizado em 2013 com uma TED Talk sobre o tema, que conta com mais de 10 milhões de visualizações entre o site oficial da TED e o YouTube.

Giselle Bündchen e Tom Brady surgem num segmento de pouca ou nenhuma importância para a mensagem global, relacionado com a ‘qualidade’ dos alimentos, enquanto a intervenção de Jason Mraz parece ser feita à volta de “tenho uma quinta, produzo abacates e sou vegan”.

O último ponto a assinalar prende-se com o momento particularmente baixo na narrativa: ao explicar um conjunto de condições que levaram ao modo de produção industrial da agropecuária após a Segunda Guerra Mundial, os produtores caíram na ‘armadilha’ de estabelecer a relação entre as câmaras de gás do Holocausto e as primeiras armas químicas com a criação e distribuição de pesticidas e fertilizantes artificiais. Não discutindo a verdade desse segmento, a realidade é que os pressupostos científicos e o benefício prático das soluções apresentadas valem por si; mas percebe-se o efeito ‘choque’ que é sempre tão fácil de conseguir com a mais subtil referência ao Holocausto.

A mensagem que fica

Woody Harrelson despede-se com esta deixa (seguida de uma versão acústica de I Won’t Give Up de Jason Mraz de encolher o corpo na cadeira, para questionar um pouco mais a sua prestação neste documentário):

(…) o nosso planeta pulsa de vida. Por milhões de anos, tem-se curado e equilibrado sozinho; mas hoje a nossa espécie enfrenta o seu maior desafio. A nossa missão é simples: temos de aproveitar o poder regenerativo da própria terra. Vamos fazer assim: eu não vou desistir; e vocês também não deviam.

Capturar carbono da atmosfera e colocá-lo no solo, apesar de todos os efeitos positivos que tem na produção e segurança alimentar, não é a solução, mas sim uma solução, num conjunto muito alargado de mudanças que devem ser feitas não só ao nível das escolhas individuais, mas também de tudo o que está errado com o modo de produção vigente: lucro rápido sem vista à sustentabilidade a médio-longo prazo, preços garantidos antes da colheita, monoculturas intensivas e o que tudo isso e outro mais significa em termos de destruição dos recursos naturais e, consequentemente, da própria condição da espécie humana.

O dióxido de carbono na atmosfera funciona como a água da torneira a cair num copo; neste momento, a torneira está totalmente aberta e o copo quase a transbordar. Reduzir as emissões de gases com efeito de estufa é fechar um bocadinho o caudal da torneira; o copo continua a encher. É preciso fechar a torneira e fazer com que o copo pare de encher. Esse copo está na nossa mão: muito cheio durante muito tempo acaba por cansar o braço, o copo cai e parte-se. Para evitar isso, mais do que fechar a torneira é preciso mandar alguma dessa água fora, ou melhor, bebê-la. A mão agradece, o copo fica intacto, e ainda nos hidratamos.

Na atmosfera passa-se o mesmo: não estamos a conseguir fechar a torneira, muito por inação política; mas se capturarmos algum do carbono em excesso na atmosfera é possível ganhar algum tempo para o surgimento de uma solução mais viável e, pelo caminho, alimentar muita gente que bem precisa.

O copo está bem cheio e a mão começa a doer, mas já localizamos a torneira, sabemos como fechá-la e sabemos como esvaziar ligeiramente o copo. Mas estamos paralisados.

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